segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Osteomielite em pé diabético

Osteomielite em pé diabético

Dra. Geísa Maria Campos de Macedo
Mais de 60% das amputações não traumáticas de membros inferiores ocorrem em diabéticos, sendo a maioria delas precedida por uma úlcera infectada. A possibilidade de um resultado adverso é ainda maior nos países em desenvolvimento, onde o acesso ao cuidado médico, especialmente a terapias mais avançadas, é frequentemente limitado. A morbidade e a mortalidade associadas a úlceras infectadas em pés diabéticos deve aumentar, visto que diabetes é uma epidemia que está projetada para atingir a cifra de 366 milhões no ano 2030.(1)
Infecção em pé diabético é um problema comum, de alto custo, tem grande morbidade e é a maior causa de amputações. Os pacientes diabéticos têm 10 vezes mais chances de hospitalização por infecção nos pés, e uma úlcera infectada tem 30 vezes mais risco de amputação. A presença de osteomielite aumenta em mais 8 vezes este risco (2).
Osteomielite é uma infecção séria, que apresenta dificuldades no diagnóstico e tratamento, especialmente quando acomete os ossos dos pés de portadores de diabetes.
O diagnóstico e manuseio da osteomielite podal é, talvez, o tópico mais controverso nas infecções do pé diabético. Ela é uma das conseqüências das várias complicações do diabetes, especialmente úlceras infectadas em pés com neuropatia, com outros fatores contribuintes, como doença vascular periférica e defeitos na imunidade e na cicatrização (3). A neuropatia, além de levar a deformidades nos pés, leva à perda da sensibilidade dolorosa, entre outras, o que dificulta a percepção da lesão no pé, que, especialmente se infectada, necessita de tratamento urgente. A presença de doença arterial periférica facilita a disseminação da infecção, dificultando a chegada dos leucócitos e antibióticos ao local infectado, comprometendo a viabilidade dos tecidos moles e ossos. A presença dos sinais clássicos de infecção, leucocitose e elevação dos marcadores inflamatórios podem não se manifestar adequadamente na presença de isquemia crítica (1).
A osteomielite no pé diabético usualmente é adquirida por contiguidade, tendo como foco contaminante uma úlcera infectada. Este processo leva dias ou semanas, e raramente acontece em infecções agudas. A presença de trauma e isquemia aumenta a susceptibilidade do osso à invasão bacteriana.
Todos os pacientes com úlceras de longa duração (2 semanas ou mais), ou que não cicatrizam após 6 semanas de tratamento adequado, infecções localizadas em proeminências ósseas, ou com exposição óssea, devem ser avaliados para osteomielite. As úlceras com 2 cm ou mais de largura e profundidade igual ou maior que 3 mm são mais associadas com osteomielite (4).
A combinação de alguns fatores clínicos e laboratoriais podem ser úteis na distinção entre osteomielite e celulite:
- A presença de úlceras com profundidade > 3 mm (p=0,001).
- Proteína C Reativa (PCR) > que 3.2 mg/dl (p<0,001). Este é o teste laboratorial e clínico mais informativo.
- VSH > 60mm/h.
A profundidade da úlcera, associada a marcadores inflamatórios, é uma estratégia útil para o diagnóstico de osteomielite, em pacientes com úlceras nos pés (sensibilidade 100% [IC 95% 89.7% - 100%]) (5).
Cerca de 25% dos pacientes diabéticos vão desenvolver úlceras nos pés em algum momento de suas vidas, sendo que 40 a 80% delas se tornarão infectadas, e ¼ apresentarão osteomielite (6). A presença de osteomielite aumenta a possibilidade de falha terapêutica e de amputação.
O curso desta osteomielite geralmente é indolente, e sintomas como febre, inflamação e leucocitose são usualmente ausentes. Dez a 20% das infecções leves a moderadas do pé, e 50 a 60% das infecções sérias, levam à osteomielite. Geralmente a infecção progride para osteomielite porque sua extensão é subestimada e o tratamento é tardio e sub-ótimo.
O aspecto clínico patognomônico de osteomielite é a presença do dedo em salsicha, ou seja, um dedo aumentado de volume, de cor vermelho escura, podendo ou não ter um orifício de drenagem de pus (Fig. 1).
Figuras 1 - Imagens de dedo em salsicha.
O diagnóstico de osteomielite em pacientes diabéticos com infecção nos pés não é uma tarefa fácil. Existem graus variados de dificuldade em distinguir os quadros infecciosos dos não infecciosos e as infecções em tecidos moles das infecções ósseas, principalmente nas situações iniciais. Pacientes diabéticos podem ter destruição óssea de causa neuro-traumática, por neuroartropatia de Charcot, o que pode ser difícil de distinguir de infecção.
Quando uma infecção se estende até o osso, primeiro atinge o periósteo, causando uma periostite, em seguida o córtex, dando uma osteíte, e finalmente atinge a medula óssea, resultando em osteomielite. Na neuroartropatia de Charcot a causa da destruição óssea não é infecciosa. Na osteomielite crônica, focos de osso necrótico (sequestro) podem ser vistos.
Eventualmente, fragmentos de osso infectado podem extruir pelo orifício da úlcera, ou serem removidos durante o desbridamento.
Métodos Diagnósticos
Na avaliação clínica deve ser incluída a sondagem óssea, que consiste na introdução de um estilete de metal esterilizado através da úlcera. Se o estilete tocar o osso, a sondagem é positiva e indica que a osteomielite está presente. O método tem sensibilidade de 87% e especificidade de 91%, com valor preditivo positivo de 57% e preditivo negativo de 98% (7).
A radiografia simples do pé é um exame de valor limitado no diagnóstico de osteomielite aguda, pois as alterações características, como reação periosteal, erosões corticais e destruição óssea só são visíveis 2 semanas após o início da infecção, quando 30 a 50% do osso está destruído (6). A radiografia tem valor no seguimento das alterações ósseas durante as semanas seguintes ao diagnóstico da osteomielite aguda. Se a osteomielite é crônica, podemos observar as lesões típicas já na primeira radiografia (Fig. 2).

Figura 2 - Imagens radiográficas de lesões de osteomielite.
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A cintilografia óssea com Tecnécio tem boa sensibilidade (85%), mas baixa especificidade (45 a 50%) e não consegue distinguir osteoartropatia de infecção, ou infecção ativa da recentemente curada. A cintilografia com leucócitos marcados com Índio tem sido desapontadora. Estudos com vários outros marcadores parecem promissores, mas precisam ser comprovados.
A ultra-sonografia de alta resolução, feita por profissional experiente, mostra um valor preditivo positivo de 92%, com sensibilidade de 79% e especificidade de 80%. Pode servir de teste de rastreamento para a detecção de osteomielite (8).
A ressonância nuclear magnética (RNM) é o melhor método de imagem para o diagnóstico da osteomielite (9). Tem alta sensibilidade (29% a 100%) e especificidade (40% a 100%).
A tomografia por emissão de pósitrons - PET- Scan (FDG-PET) tem se mostrado útil. Um estudo recente com 110 pacientes comparando, a radiografia simples, ressonância magnética e o FDG-PET, no diagnóstico de osteomielite em pé diabético, mostrou que a sensibilidade do método FDG-PET foi de 81%, com especificidade de 93%, com valor preditivo positivo de 78% e negativo de 94%. (13)
A biopsia óssea para coleta de fragmento para cultura e exame histológico é o “padrão-ouro” no diagnóstico, pois, além do diagnóstico definitivo da osteomielite, identifica o agente etiológico. O material pode ser obtido por punção óssea (com o cuidado de não atravessar a úlcera), ou a céu aberto.
Devem ser colhidos 2 a 3 espécimes, enviando pelo menos um para cultura e outro para exame histológico.
Figura 3 - Algoritmo de diagnóstico da osteomielite em pé diabético (Adaptado de A. Berendt and B. Lipsky)
Os patógenos mais freqüentes na osteomielite são os gram-positivos (estafilo e estreptococos), mas flora polimicrobiana é o usual, principalmente nas infecções crônicas, com cerca de 2 a 5 germes/caso. Fungos raramente causam osteomielite. Pés com necrose isquêmica aumentam a possibilidade de enterococos, gram-negativos e anaeróbios.
Tratamento da Osteomielite
Quarenta a 60% dos pacientes que são tratados de úlceras nos pés recebem antibióticos. Nos portadores de doença arterial periférica, muitas vezes a concentração local de antibióticos não atinge o nível terapêutico desejado, mesmo quando os níveis séricos são adequados.
Deve-se incluir sempre um antibiótico anti-estafilo e estreptococo. Os casos que receberam antibióticos previamente, ou os casos mais severos, podem necessitar de extensa cobertura, incluindo gram-negativos e enterococos.
A osteomielite pode ser tratada com abordagem cirúrgica, fazendo amputação do segmento do pé onde o osso ou ossos estão acometidos, ou retirando apenas as áreas de osso infectado e seqüestro ósseo, com subseqüente tratamento clínico. Uma outra possibilidade é fazer apenas o tratamento clinico, com antibioticoterapia a longo prazo por vários meses, até a cura.
Não se pode prever em quais pacientes o tratamento clínico vai falhar.
Figura 4 - Tratamento da osteomielite
O tratamento clínico da osteomielite deve ser considerado quando a cura cirúrgica causar perda de função inaceitável, quando houver risco cirúrgico excessivo, quando houver isquemia não tratável com revascularização e o paciente não aceitar amputação, e quando a infecção for restrita ao antepé, com mínima perda de tecido (10). Uma boa perfusão e a ausência de exposição óssea são fatores importantes para o sucesso terapêutico. A possibilidade de recidiva varia de 20 a 30%.
É recomendável usar antibióticos com boa penetração óssea, por um tempo mínimo de 6 semanas. Quando houver retirada cirúrgica de todo o osso infectado, sem infecção residual de tecidos moles, deve-se usar antibióticos por mais 2 a 3 dias após o procedimento. Quando houver retirada cirúrgica de todo o osso infectado, com persistência de infecção de tecidos moles, deve-se usar antibióticos por mais 7 a 14 dias. Se apenas o tratamento clínico for feito, a antibioticoterapia deve ser prolongada por 3 a 6 meses, ou mais (11).
A remoção de todo o osso infectado provavelmente dá a melhor chance de cura, assim como deixar osso infectado aumenta a possibilidade de recorrência. Pacientes que conseguem remissão apenas com antibióticos devem ser cuidadosamente monitorizados por pelo menos um ano, pois podem apresentar recorrência da osteomielite, anos após um tratamento aparentemente apropriado (1).
Vários estudos têm mostrado a possibilidade de sucesso no tratamento da osteomielite, apenas com uso de antibióticos, embora não haja dados que mostrem a superioridade de um antibiótico em particular ou via de administração. É preciso sempre usar drogas que tenham boa penetração óssea e que cubram estafilococos (aureus) e estreptococos (14).
Certamente que no momento de decidir sobre o uso apenas do tratamento clinico, é importante considerar o local da infecção, a quantidade de osso envolvido, a bactéria infectante e a vascularização. Alguns antibióticos tem surgido como novas opções terapêuticas interessantes para o pé diabético infectado, tais como daptomicina, tigeciclina, moxifloxacin, e telavancin, mas faltam estudos sobre seu uso na osteomielite.
Não há evidências de que a terapia com larvas de moscas Lucilia Sericata e a oxigênioterapia hiperbárica sejam úteis no tratamento da osteomielite(12).
A presença de doença arterial periférica avançada, doença cardiovascular aterosclerótica e insuficiência renal pioram o prognóstico.
É fundamental controlar bem a glicemia, além de tratar as co-morbidades que usualmente estão presentes no paciente diabético, como hipertensão arterial, dislipidemia, e insuficiência vascular, além do edema de membros inferiores.
Manter um bom estado nutricional, com níveis de albumina normais, também é importante para o sucesso terapêutico.
Referências bibliográficas e leituras recomendadas
1. Mark A Kosinski and Benjamin A. Lipsky. Current Medical Management of Diabetic Foot Infections. Expert Reviews Anti Infect Therapy. 8 (11),1293 – 1305 (2010).
2. Benjamin Lipsky and Anthony Berendt. The Foot in Diabetes, 4th edition, 2006.
3. Lipsky BA. Osteomyelitis of the Foot in Diabetic Patients. Clinical of Infectious Diseases 25;1318-26, 1997.
4. Neuman LG Wallen J, Palestro CJ, et al. Unespected Ostemyelitis in Diabetic Foot Ulcers: Diagnosing and Monitoring by Leuccocyte Scanning With I 131 Oxyquinolone. JAMA 226;1246-51, 1991.
5. FleischerAE, Didyk AA, Woods JB, Burns SE, Wrobel JS, Armstrong DG. Combined Clinical and Laboratory Testing Improves Diagnostic Accuracy for Osteomyelitis in the Diabetic Foot. Journal of Foot and Ankle Surgery. 2009 Jan-Feb;48(1):39-46.
6. Anthony Berendt and Benjamin Lipsky. The Foot in Diabetes, 4Th edition, 2006.
7. Lavery, Lawrence A, Armstrong D G, Peters Edgar JG, Lipsky Benjamin A. Probe-to-bone Test for Diagnosing Diabetic Foot Osteomyelitis: Reliable or Relic? Diabetes Care, vol. 30 February, 270-274, 2007.
8. Diabetes Care 22:294-299, 1999.
9. Schweiter ME, Morrison WB. MR Imaging of the Diabetic Foot. Radiol Clin North Am 42:61-71,vi, 2004.
10. Guidelines For Diabetic Foot Infections, 2004.
11. International Consensus on the Diabetic Foot, 2003.
12. International Consensus on the Diabetic Foot, 2007.
13. Nawaz A, Torigian DA, Siegelman ES, Basu S, Chryssikos T, Alavi A.
Molecular Imaging Biology. 2010 Jun;12(3):335-42. Epub 2009 Oct 9.
14. Berendt AR, Peters EJ, Bakker K et AL. Diabetic Foot Osteomyelitis: A Progress Report on Diagnosis and Systematic Review of Treatment.
Diabetes Metab. Res. Rev. 24,S145-S161 (2008).

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